17 de fevereiro de 2010

A Equitação Científica do Novo Século

Os nômades da Ásia Central, desprovidos de ciência, foram os melhores cavaleiros do mundo. No Ocidente, 3.400 anos depois, Federico Caprilli, foi contemporâneo de Ivan Pavlov, Charles Sherrington e Sigmund Freud que começavam a desvendar o mundo da fisiologia, da bioquímica e da psicologia. Caprilli elevou o cavalo de objeto a indivíduo — o que estava em perfeita sintonia com o avanço da ciência do seu tempo, e também com a equitação dos nômades! Mas, o que acabou sendo a equitação científica no século 20? A ciência é um conjunto de conhecimentos obtidos mediante a observação e a experimentação dos fatos. Entretanto os cientistas ocidentais, urbanos e sedentários, sempre tiveram grande dificuldade em entender o conjunto de conhecimentos que os povos ditos 'primitivos' obtêm, não através da das pesquisas mas, simplesmente por eles serem uma 'parte' natural do sistema ecológico. "Como o mundo é governado das cidades, onde os homens se acham desligados de qualquer forma de vida que não a humana, o sentimento de pertencer a um ecossistema não é revivido", escreveu Berthrand de Juvenel.

Outra dificuldade que tem atravancado o pensamento ocidental acerca dos conhecimentos das sociedades primitivas é que, sendo a ciência tratada como uma 'ideologia secular de progresso', aos olhos do homem moderno uma tribo de indígenas, vivendo na Idade Neolítica, simplesmente não poderia saber mais do que um cientista, acerca de qualquer coisa. No Brasil, aprendemos com Darcy Ribeiro que um índio Kaiapó, por exemplo, tem uma sofisticada classificação do seu meio ambiente que lhe permite viver com fartura onde o etnólogo Claude Levi-Strauss, com toda a sua sabedoria científica, morreria de fome. O nômade da Ásia Central e o seu cavalo formavam um sistema fisiológico integrado - sintonizado à perfeição por muitos séculos de aprendizagem bilateral. Um cita montava a cavalo como a Márcia Haydée dança balé ou o Von Karajan rege uma orquestra - com a sabedoria da alma. Os cavaleiros nômades não precisavam de livros para passar os seus conhecimentos eqüestres para as novas gerações - todo membro da sociedade começava a aprender o ofício eqüestre desde quando nascia. Entretanto, nas sociedades urbanas e sedentárias, organizadas em profissões especializadas, é muito diferente. As técnicas eqüestres precisam ser registradas em livro para ser ensinadas para as novas gerações. Aí surgiu o problema da equitação científica no século 19: como conhecer a fisiologia da equitação se nem a ciência e muito menos a sociedade, conheciam a psicologia, a fisiologia, a neurofisiologia e a bioquímica do cavalo e a sua função na equitação? Entretanto, os grandes mestres equitadores do passado sempre procuraram dar uma orientação científica ao seu trabalho. Pluvinel, no século 17, sem entrar em maiores detalhes, deixou claras as vantagens da equitação racional e 'científica' em oposição aos métodos brutais e irracionais. Durante o século 19, a física e a mecânica avançaram com uma velocidade cada vez maior, e assuntos que eram matérias distintas começaram a convergir, criando novas sínteses e novas descobertas. Mas as palavras de Baucher ecoam nos dias de hoje como uma descrição puramente mecânica - "Cada movimento do cavalo é a conseqüência de uma posição específica que, por sua vez é produzida por uma força 'transmitida' pelo cavaleiro". A imagem que temos do cavalo descrito por Baucher é a de uma máquina, formada por pistões e alavancas, e a força do cavalo é descrita como se emanasse do cavaleiro, todo poderoso. O cavaleiro de Grisone e de Baucher era o centro do mundo eqüestre (assim como, na antigüidade, a Terra era o centro do universo), e nos seus livros o cavalo e a equitação se transformaram numa grande metáfora da ciência mecânica. Já, no século 20, as idéias de Caprilli elevaram o cavalo de objeto mecânico a indivíduo sensível, capaz de fazer julgamentos próprios — um salto monumental sobre o mecanicismo do passado. Caprilli insistia que o cavalo experiente é perfeitamente capaz de julgar a distância, e decidir se deve aumentar ou diminuir os seus galões e regular o momento do salto. "Tudo o que é necessário é o cavaleiro interferir o mínimo possível no equilíbrio natural do cavalo, e se ajustar à maneira do cavalo se movimentar". Com as idéias de Caprilli, de repente, o cavalo e o cavaleiro se tornaram parceiros. Caprilli incorporou o cérebro do cavalo e o seu sofisticado sistema neurofisiológico à sua filosofia de trabalho e se tornou o mais importante cavaleiro da sua geração. Mesmo não conhecendo neurofisiologia, para ele, a fusão dos sentidos e a união dos gestos do conjunto eram fatores importantes na equitação. Nos circuitos de salto, as suas técnicas foram adotadas com grande sucesso e a equitação clássica estava pronta para dar um salto espetacular - da Idade Mecânica para ingressar na Era da Neurociência. Mas, naquele momento, o mundo parou de se preocupar com o cavalo, e todo o esforço científico - as novas e importantes descobertas da neurologia, da psicologia, da química e da informática (matérias que ninguém associou com a equitação) - se voltou para resolver os problemas sociais, políticos e econômicos, que pulularam no atormentado século 20. O cavalo e a equitação tornaram-se obsoletos, como uma pena de ganso depois da pena de metal, da pena de metal depois da caneta-tinteiro, da caneta tinteiro depois da máquina de escrever e da máquina de escrever depois do processador de texto. A banda próspera da humanidade parou de se interessar por cavalos para viver um tórrido romance com o automóvel; um terço da população do globo ardeu com a febre do comunismo, só curada com doses maciças de consumismo. Deus estava morto, Marx estava morto e o Homo-caballus era, aparentemente, mais uma espécie extinta. Com o discreto renascimento eqüestre nos anos 50, os 'entusiastas' do cavalo se voltaram para a Equitação Acadêmica do passado em busca das soluções para o presente, da mesma maneira que a sociedade medieval se voltou para a cultura clássica grega durante a Renascença italiana. As obras clássicas sobre equitação (algumas já discutidas aqui) foram desenterradas, espanadas e postas em prática, com grande reverência e respeito. A Idade Mecânica foi restaurada ao poder do mesmo modo que o universo aristotélico foi restaurado na Renascença - como se a revolução tecnológica do século 20 não estivesse em pleno curso. Infelizmente é preciso dizer que a equitação 'científica' do século 20 foi uma cópia xerox em preto e branco da equitação pouco científica do século 19. Precisamos urgentemente rever as técnicas da equitação clássica à luz das grandes descobertas científicas que estão mudando os paradigmas de todas as áreas do conhecimento humano.