28 de dezembro de 2009

Transdisciplinaridade e Equoterapia : um novo paradigma

A história da produção do conhecimento chegou a nossos dias enfatizando a ciência como o modo hegemônico de produção. Outros tipos de conhecimento foram negados ou relegados a planos secundários. A ciência estabeleceu-se através da fragmentação do todo em partes de modo a permitir seu conhecimento. Isto levou ao surgimento de um grande número de disciplinas e especialidades. Baseada no conhecimento técnico, a ciência deu o passo gigantesco que produziu a revolução industrial e mudou a face de nosso planeta. No século 20, a aceleração da revolução técnica enrijeceu a estrutura da produção disciplinar do conhecimento científico e suscitou o questionamento dos axiomas dos paradigmas mecanicistas. A Teoria dos Quanta provocou uma nova revolução na física e na ciência. Novas necessidades tornaram imperioso o surgimento de equipes multi e interdisciplinares em todos os campos da ciência. Mais do que isso, o grau de complexidade dos fatos, desafios e problemas do mundo globalizado impôs a necessidade de resgatar a legitimidade do conhecimento aquém e além da ciência formal reconhecida. A transdisciplinaridade, como um paradigma emergente, propõe transcender o universo hermético da ciência e trazer para a superfície a multiplicidade fantástica dos modos de produção de conhecimento, assim como o reconhecimento da multiplicidade e diversidade de produtores de tal conhecimento. E assim nasce a necessidade de reforçar o valor de cada indivíduo-sujeito como produtor e portador de conhecimento legítimo. A transdisciplinaridade chama nossa atenção para a diversidade. Somos chamados à consciência da potencialidade das formas heterogêneas, em contraste com as tendências homogeneizantes de nossos tempos. Como afirmado por Morin (2002), para que a prática da transdisciplinaridade seja uma solução, uma “reforma do pensamento” faz-se necessária. Os princípios científicos estão em permanente processo de desenvolvimento, e sabemos hoje que eles não são um reflexo exclusivo da realidade objetiva. A estrutura do espírito humano e o conhecimento dos condicionantes socioculturais são também partes inseparáveis deles. O paradigma tradicional que ainda hoje prevalece está em meio a uma crise, e um novo paradigma surge como uma saída para a ultra especialização do conhecimento científico. De acordo com Santos (1996), as principais características do novo paradigmas são as seguintes: - a. o fim da dicotomia ciências naturais/ciências sociais, tanto quanto a superação de outras dicotomias, como natural/artificial, mente/matéria, observador/ observado, coletivo/individual; - b. a superação da fragmentação do conhecimento e do reducionismo arbitrário, com a busca do conhecimento do todo – conhecimento que não é nem determinista nem descritivo, estabelecido através de uma pluralidade de metodologias; - c. a necessidade de uma nova forma de conhecimento que inclua o sujeito; um conhecimento compreensivo e íntimo que pode ser transformado em sabedoria no viver quotidiano; uma forma de conhecimento que permita a contemplação do mundo, mais do que as tentativas de controlá-lo; - d. o resgate do bom senso, proporcionando o enriquecimento de suas dimensões utópicas e libertadoras através do diálogo com o conhecimento científico. A transdisciplinaridade foi pioneiramente mencionada por Piaget em 1970, quando ele propôs um nível superior de relações interdisciplinares. Ele considerava tais relações no bojo de um sistema total, sem fronteiras entre as disciplinas. Era como um sonho para Piaget. Foi a partir dos anos 80 que novos movimentos em diversos campos caracterizaram o novo paradigma. E essas correntes têm convergências claras em pensamentos que estão atualmente discussão: autopoiesis, auto-organização, pensamento complexo, inteligência coletiva, teoria das redes e muitos outros. Transdisciplinaridade e pensamento complexo contêm a diversidade e se constituem em poderosas ferramentas para se compreendê-la. E, para colocá-la em prática, é necessário, de acordo com Morin (2002), restabelecer as ligações entre os conhecimentos, implicando um novo processo de reaprendizagem da produção científica. A tendência no sentido da transdisciplinaridade não pode mais ser negada. O Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, no Convento da Arrábida, Portugal, de 2 a 6 de novembro de 1994, estabeleceu as bases definitivas. Assinada por Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu, a Carta da Transdisciplinaridade foi então adotada. Sua subscrição estava então, e ainda está, aberta a todos. É nossa vez de subscrevê-la. Ela precisa ser lida em sua totalidade, mas aqui transcrevemos seus quatro primeiros artigos: Artigo 1: Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de dissolvê-lo no meio de estruturas formais, sejam quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar. Artigo 2: O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar. Toda tentativa de reduzir a realidade a um só nível, regido por uma lógica única, não se situa no campo da transdisciplinaridade. Artigo 3: A transdisciplinaridade é complementar à abordagem disciplinar; ela faz emergir novos dados a partir da confrontação das disciplinas que os articulam entre si; nos oferece uma nova visão da natureza da realidade. A transdisciplinaridade não procura a mestria de várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as une e as ultrapassa. Artigo 4: A pedra angular da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta a um novo olhar sobre a relatividade das noções de “definição” e de “objetividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e a absolutização da objetividade, incluindo-se a exclusão do sujeito, conduzem ao empobrecimento. O que quero enfatizar ao escolher os quatro artigos iniciais para representar os fundamentos básicos da transdisciplinaridade? Mais uma vez aqui está a diversidade em minha mente.
Em primeiro lugar, a recusa a reduzir o ser humano a quaisquer que sejam as definições oferecidas pelas filosofias disponíveis. Em segundo lugar, a aceitação de diferentes níveis de realidade regidos por diferentes tipos de lógica. Em terceiro, a abordagem das disciplinas oferecida pela transdisciplinaridade, inclusive a nova visão da natureza e da realidade, tanto quanto a recusa da superioridade de uma determinada disciplina sobre qualquer outra. E a unificação prática e semântica de significados que transpassam e vão além de todas as disciplinas. Estamos ainda sujeitos a condicionamentos mecanicistas e reducionistas implícitos no paradigma Cartesiano/Newtoniano. O homem foi feito máquina. E assim, tornou-se objeto de técnicos. Além disso, os meios e as relações de produção capitalistas geraram um profundo processo de ruptura, de fragmentação, de egocentrismo, de desintegração da solidariedade. O homem é partido em múltiplas e conflitivas personae, a maioria delas determinadas pelas necessidades de produção e pelas demandas da sociedade capitalista. Bens de consumo baratos produzidos em larga escala são a fonte de poluição e degradação que estão ameaçando o meio ambiente em que vivemos. Fundamentalismos religiosos, sectarismos de diversos tipos, cegueiras e loucuras políticas, extremas avareza e cobiça sob o título de livre mercado são a fonte de miséria extrema, guerras e degradação humana. No campo da saúde humana, processos semelhantes acontecem. Pesquisas médicas são direcionadas às doenças geradoras de lucros e às suas drogas curativas. Parquíssimos recursos são destinados à prevenção, educação e saúde pública. O corpo humano é retalhado em partes e entregue aos cuidados de diferentes técnicos e técnicas. Sem alma, sem totalidade, sem ternura. Avareza e corrupção emergem. Ao final de tudo, pode-se concluir que as práticas políticas e as teorias econômicas ainda prevalentes abrem caminho para considerar todas essas perversidades como valores básicos, quando são de fato cruéis, fragmentadoras e polimórficas patologias humanas. Em julho de 1997, em uma entrevista para a revista Label France conduzida por Anne Rapin, quando perguntado sobre globalização e a “era planetária”, Edgar Morin respondeu que “…De fato, porque a globalização está fora de controle, ela é acompanhada por muitas instâncias de regressão. Mas, é uma possibilidade que poderia ser desejável. Obviamente, a globalização tem um aspecto muito destrutivo: ela gera anonimato, reduz as culturas individuais a um denominador comum e padroniza identidades. Contudo, ela é também uma oportunidade única para promover a comunicação e o entendimento entre as várias culturas dos povos do planeta e encorajar sua mistura (blending). Este novo capítulo acontecerá apenas quando nos tornemos inteiramente conscientes do fato de que somos cidadãos do planeta antes de tudo, e então europeus, franceses, africanos, americanos... o planeta é nosso lar, um fato que não nega os lares individuais de outros. A consciência de nosso destino global como uma comunidade é o pré-requisito para a mudança que nos permitiria agir como co-pilotos do planeta, cujos problemas se tornaram inseparavelmente inter-relacionados.
Caso contrário, iremos experimentar um destino semelhante àquele da “balcanização”, uma retaliação violenta e defensiva contra etnias específicas ou identidades religiosas, o que é o oposto deste processo de unificação e solidariedade através do planeta.” Agora, a globalização aqui está, a diversidade está aqui; o pensamento linear causa-efeito ainda regula nosso mundo moderno. Como podemos lidar com um tão vasto universo de disciplinas? Como a transdisciplinaridade pode nos ajudar? O campo atual da equoterapia em todo o mundo é ainda fortemente marcado pelo paradigma tradicional Cartesiano. A Babel de expressões que perpassa nosso campo de trabalho é um sintoma preocupante, mais do que uma salutar diversidade. Marguerite Malone (Serendipity Farm, Tuscaloosa/Alabama) chamou-me a atenção para um artigo de autoria de Ann C. Alden, ex-presidente da EFMHA, no qual se empenha em listar e definir os vários anacronismos usados no campo e que ela chama de “Sopa de Alfabeto”, que poderíamos chamar de “Sopa de Letrinhas”. Para ilustrar o sintoma acima descrito, apresentamos a seguir uma breve lista de denominações usadas para identificar o que fazemos. – Riding therapy (terapia através de equitação); – Therapeutic riding (equitação terapêutica); – Riding for the handicapped (equitação para deficientes); – Riding for the disabled (equitação para incapacitados);– Hippotherapy, hippotherapie (hipoterapia); – Equinoterapia; – Equotherapy, equoterapia; – Equine Assisted Therapy (terapia com auxílio de eqüino); – Equine Facilitated Therapy (terapia facilitada pela utilização de eqüinos); – Horseback Assisted Therapy (terapia com apoio de montaria a cavalo); – Equestrian re-education (reeducação eqüestre); – Equestrian rehabilitation (reabilitação eqüestre). Sofremos todos, com certeza, as conseqüências de nossa “Sopa de Alfabeto”, em nossa querida Torre de Babel. Comunicações difíceis, algumas vezes impossível, para dizer o menos. Não apenas entre nós, mas também com nossos associados, patrocinadores, praticantes e suas famílias e com o público. Embora não seja o propósito deste trabalho justificar e explorar a necessidade de adoção de uma linguagem unificada, este autor sugere enfaticamente a expressão equoterapia, cunhada pela Ande Brasil – Associação Nacional de Equoterapia. Esta palavra simples e densa inclui os termos “Equus” e “therapeia”. A expressão equoterapia está ainda livre de conotações comprometedoras e pode bem representar a abordagem transdisciplinar para as atividades terapêuticas conduzidas com a ajuda de um eqüino e de uma equipe multiprofissional. É seguro que uma palavra universalmente aceita muito contribuiria para unificar o campo das terapias com auxílio do cavalo e o aproximaria muito do paradigma transdisciplinar. Mais sintomático do que a diversidade de denominações para nossa atividade profissional é o modo como categorizamos nossos procedimentos técnicos. Em geral, os procedimentos terapêuticos são classificados de acordo com “programas”, ou metodologias específicas, especializadas, baseadas em um dado modo de perceber a patologia do cliente e suas necessidades percebidas. Eles são muito bem fundamentados, mas são também absolutamente fragmentadores. Eles são diretamente derivados dos paradigmas fragmentários e são por eles condicionados. Programas fragmentários, não importa o quanto sejam bem fundamentados, partem de uma concepção de um sujeito fragmentado e levam a abordagens fragmentárias, a equipes fragmentadas. Não podemos desconsiderar os efeitos condicionadores de estigmas avaliativos apoiados em técnicas de diagnóstico fragmentárias, baseados em simples percepções pessoais ou preconceitos institucionalmente predefinidos: equitação para deficientes ou para incapacitados. A diversidade de campos possíveis de conhecimento capazes de contribuir para a amenização do sofrimento humano com a ajuda de eqüinos é imensa. Assim também o número de pessoas capazes de ajudar. Mas, elas estão longe de nós. Elas não atendem aos nossos “elevados” padrões e requerimentos. Elas não estão formalmente incluídas no mundo científico. Pretendemos utilizar metodologias “inclusivas”, mas excluímos mais do que incluímos. De certo modo, agrada-nos sermos “exclusivos”, “prime”. Não é mera coincidência que as estratégias de marketing explorem tanto tais expressões. E elas nos fisgam. É nosso desafio diário colocar em prática o novo paradigma em nossas atividades, em nossos procedimentos terapêuticos. Se a concepção programática é adotada, cai-se facilmente no velho paradigma. Mesmo quando se tem o discurso do novo paradigma, é extremamente difícil colocá-lo em ação. Nossas qualificações profissionais, nossa formação acadêmica, nossos treinamentos e experiências em campos específicos, nosso compromisso formal com limites legais e profissionais, tudo isso contribui para a adesão ao velho paradigma. E esses tópicos não são nada simples. Permitam-me ilustrar meu ponto de vista utilizando o Equovida, um centro de equoterapia no Rio de Janeiro, Brasil, no qual o autor exerce um papel de coordenação. Somos atualmente uma equipe de 14 profissionais: 3 psicólogos, 5 fisioterapeutas, 3 fonoaudiólogos, 1 arte-terapeuta, 2 profissionais de equitação, e dispomos de cinco cavalos. Esta equipe desenvolveu-se através de um processo de seleção natural, com muita discussão. Quem deve conduzir o cavalo? Quem conduz a sessão terapêutica? Consideremos um primeiro caso: uma menina com paralisia cerebral. Este é um caso para hipoterapia, certo? O equitador conduz o cavalo, o fisioterapeuta conduz a sessão, certo? O psicólogo conversa com a família, certo? Vejamos o segundo caso: um menino autista. Este é um caso para o psicólogo, que conduz a sessão, certo? O equitador conduz o cavalo, certo? Posso ousar dizer que a resposta pode ser não, que não está certo? A menina com a paralisia cerebral pode ter sérios problemas de comunicação, possivelmente devidos a uma certa ordem de deficiências. O menino autista pode também apresentar sérios problemas de comunicação, possivelmente devidos a outros tipos de mau funcionamento. Nós reconhecemos que também nós temos sérios problemas de comunicação. Discutimos os casos. Todos da equipe. Todos, mesmo: psicólogo, fisioterapeuta, fono, arte-terapeuta, equitador. E outros profissionais, caso os tivéssemos. Após a discussão, três ou quatro de nós vamos para a pista, todos ao mesmo tempo. Nossas sessões são sempre individuais, no que diz respeito ao praticante. Um praticante, três ou quatro terapeutas. Algumas vezes, duas sessões ocorrem ao mesmo tempo: dois praticantes, cada um com sua equipe. Os praticantes escolhem o seu parceiro principal e certamente nos ajudam a escolher o cavalo. O parceiro principal conduz a sessão. As intervenções fluem. Algumas vezes, o equitador faz a interlocução com o praticante, o fisioterapeuta conduz o cavalo, a fono faz o apoio lateral, a arte-terapeuta conversa com a família. Ao final do dia, mais discussões em equipe. A interpenetração é permanente, os quebra-cabeças são compostos de peças que mudam de forma e apresentam figuras diferentes. Nenhuma peça é rígida, fixa. Muitas vezes, o estresse emerge. O caminho mais curto não é necessariamente o melhor caminho. Mais discussão é necessária. Quando o sol começa a se pôr atrás das montanhas e a luz amarelo-alaranjado do entardecer se filtra através das folhas da grande mangueira, um halo mágico ilumina a pista. As selas, brinquedos, cabeçadas são recolhidos e guardados. Grupos se reúnem; vozes, emoções, piadas, abraços, despedidas. Outro longo e exaustivo dia acaba. Esta é a nossa equoterapia.
Amauri Solon Ribeiro - Resumo